quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Vozes da experiência




A verdade sobre o teatro que temos que engolir: por Pedro Paulo Cava e Jota Dangelo


Não é fácil fazer teatro no Brasil. Mas isso não desanima Jota Dangelo e Pedro Paulo Cava, nomes importantes das artes cênicas mineiras. Em bate-papo no Teatro da Cidade, a dupla critica as mudanças na lei de mecenato propostas pelo Ministério da Cultura, reclama de empresas e gestores especializados em intermediar a produção cultural e garante: a falta de críticos especializados faz falta ao teatro de Minas Gerais.
Atentos à cena contemporânea, os dois recomendam cuidado a jovens grupos. “Alguns deles se tornaram massa de manobra de uma pseudopolítica cultural que se instalou em alguns estados. Em Belo Horizonte, isso foi de uma clareza absoluta. Manipulam-se os recursos para esse tipo de gente”, afirma Cava. “Em alguns espetáculos noto que o pessoal está mais preocupado em fazer charada que teatro”, adverte Dangelo.

O que melhorou e o que piorou no teatro feito em Minas Gerais?

Jota Dangelo – A coisa mais importante foi a facilidade que as pessoas têm, hoje, de se formar em uma escola profissionalizante, em curso para atores. Com isso, obviamente, multiplicaram-se as possibilidades de se encontrar bons atores, bons diretores. Evidentemente, também se multiplicaram os grupos, nem sempre de muita qualidade. Há um problema sério nessa profissão: o ator tem de ser chamado, ele não sai da escola e vai fazer teatro. Como isso às vezes não acontece, alguns acabam se juntando para formar um grupo. E aí se multiplicam os grupos.
Pedro Paulo Cava – O Dangelo tem razão na questão da escola. Participei de uma, a do Ronaldo Boschi – o Centro de Pesquisas Teatrais, nos anos 1960 e 1970 – e depois fundei a Oficina de Teatro, em 1981, embrião de outras escolas, inclusive a do próprio Palácio das Artes. Agora, outra coisa que contribuiu para a melhoria das escolas de teatro foi o aumento do número de casas de espetáculos. O Teatro da Cidade foi a primeira casa particular de Belo Horizonte construída por um artista. Na época em que a abri, só havia teatros públicos aqui. Começamos a obra em 1987, inauguramos em 1990. Vamos fazer 20 anos agora. Acho ruim o fato de todas as companhias, grupos e produtores – que antes faziam com recursos próprios ou de marketing de empresas, em parcerias espontâneas – terem se tornado reféns das leis de incentivo. Criou-se uma figura estranha no meio: as empresas que intermediam e o gestor cultural, que, se puder atrapalhar, faz tudo para isso.


Fenômeno de público, a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança é alvo de críticas, principalmente por causa do grande número de comédias na programação. O que vocês têm a dizer sobre isso?

JD – Acontece um fato estranho em relação a essa campanha. A impressão que se tem é de que o público belo-horizontino resolveu eleger a campanha para ir ao teatro. No resto do ano, ele não estaria interessado. Chega a hora da campanha, é hora de o público se voltar todinho para as artes cênicas. Então, é um fenômeno estranho, porque talvez Belo Horizonte seja a única cidade brasileira em que o evento, que vem de muitos anos, persistiu. Verdade que há número exagerado de espetáculos e comédias. Outro dia mesmo, conferi a programação para ver se ia a alguma peça. Nada me atraía.

PPC – A campanha começou em 1973-74. A primeira foi feita no grito pelo Júlio Varela e por Edi Barreto Mendes. Logo depois, como presidente da extinta Fatedemg, assumi o projeto e vendemos 500 e poucos ingressos. Foi um sucesso. Hoje, vendem-se 360 mil. É o maior evento teatro do país, não tenho dúvida. É alvo de críticas – primeiro, porque é um sucesso; segundo, porque realmente há coisas que precisam ser críticas. Mas a questão não é o número grande de comédias. O brasileiro gosta de comédia. O problema, às vezes, é a qualidade de determinados espetáculos e o oportunismo de algumas pessoas. Elas jamais fizeram temporada, uma produção, mas fazem algo para poder entrar na campanha, para ganhar algum dinheiro para começar o ano. Isso, dividido por 12 meses... Quer dizer: se pegarmos o salário do ator, não dá para ele se sustentar durante o ano. A campanha realmente tem uma fórmula de sucesso, o público que vai ver essas comédias é das classes C e D, principalmente jovens.

Qual é o papel da crítica no fomento da cena teatral?

JD – No momento, é zero. Não há crítica. Aliás é o que falta ao teatro mineiro. Mesmo quando há alguns críticos, eles não escrevem regularmente. Hoje não há críticos de teatro, mas de espetáculos, que escrevem sobre tudo: dança, música, teatro. Falta não apenas fazer crítica, mas fazer parte do universo das artes cênicas para dizer também os problemas que a classe enfrenta e coisas relacionadas à política das artes cênicas.
PPC – Acho necessário voltar a fazer um curso, como na época da Oficina de Teatro, que formou vários críticos. Na época, trouxemos Yan Michalski, Edelcio Mostaço e outros especialistas, formamos alguns críticos aqui na imprensa. Está faltando dar essa cutucada nos jornalistas da área. A cutucada pode ser um curso de crítica, um curso intensivo sobre como ver um espetáculo teatral e também sobre como estar dentro da problemática do setor, como o Dangelo falou. A crítica já teve papel mais importante do que tem hoje.

As leis de incentivo realmente estimulam a produção?

JD – Hoje, é impossível pensar em produção nas artes cênicas sem leis de incentivo. Fora o filme Lula, o filho do Brasil, todo mundo precisa das leis. Mas elas têm sua face perversa, suas distorções , que não serão resolvidas como quer o ministro da Cultura, Juca Ferreira. Ele está preconizando mudanças de tal maneira que deixará de existir o mecenato para ficar só o fundo cultural. Isso é viés ideológico, é estatizante, vai acabar em grupinho pequeno dizendo o que vai ser beneficiado e o que não será. Se bem que tenho informação de que a mudança da lei não vai para a frente.
PPC – Só uso lei de incentivo para a manutenção do Teatro da Cidade. Nunca recorri a ela para espetáculos. Em todos eles acabo, de certa maneira, obtendo um ou dois patrocínios para que sejam realizados por meio de marketing direto para as empresas. Como estou fazendo isso repetidamente, vamos fidelizando esses patrocinadores. A proposta do ministro da Cultura de acabar com a lei é ditatorial, a classe artística não foi ouvida. Tanto Caetano Veloso como Zé das Tranças, que tem um congado lá em Matipó, têm direito de acesso à lei. Trocá-la por um fundo, que vai ficar na mão de um burocrata da cultura e, em geral, tem uma cor partidária... Encarregar esse burocrata de determinar a política a ser adotada é tirar a roupa de um santo para vestir outro. O ministério alega que as empresas estão determinando a estética da cultura brasileira. A partir de então, seria o governo. Ou seja, nós vamos voltar ao tempo da ditadura. Isso não vai passar no Congresso.

De que o teatro precisa neste momento?

JD – Tenho uma ideia meio esdrúxula, não apenas em relação ao teatro. Vejo a cultura de maneira tão diferente. Mais que todas as artes, o teatro é coletivo. Há necessidades tão específicas de cada grupamento, de cada produtor, que fica difícil falar em política cultural. Quando ouço falar em política cultural, tenho a impressão de que se pode uniformizar as coisas. Na política para o teatro e as outras artes, precisa-se daquilo que estabelecemos há muito tempo: ao Estado cabe simplesmente estimular, divulgar e fazer com que o acesso à cultura seja o mais amplo possível. Não mexam no processo criativo, por favor. Isso cabe a quem cria.
PPC – O que está faltando ao teatro é qualidade, além de uma coisa que a gente fazia nos anos 1960, 1970 e meados da década de 1980. Os artistas se reuniam para pensar o que é produção, o que é a coisa do movimento cultural. Hoje, vejo reuniões para pensar políticas públicas de cultura. Isso não interessa muito para o artista, não. Para ele, que está na ponta e é beneficiado ou prejudicado por essas políticas, o importante é saber como divulgar o trabalho, como vai apresentá-lo, que público vai ter.
JD – Como vai sobreviver.
PPC – Falta à classe teatral ou cultural descer do salto alto e deixar de achar que é vanguarda. Não somos vanguarda de nada, estamos vivendo um momento extremamente caótico, em que há desinformação total a respeito do que é arte e cultura. E ainda há a figura do gestor botando lenha na fogueira, dizendo que eles é que vão determinar que arte e cultura podem ser feitas neste país. Isso é uma espécie de censura.
JD – É preciso tomar um pouco de cuidado para a gente não cair em esparrelas, em armadilhas, como vejo hoje muito difundida uma tal de democracia direta. É mais ou menos aquela em que você faz consultas diretas como se as maiorias fossem a verdade. É preciso ter cuidado com esse tipo de coisa, porque nem sempre as pessoas estão em condições de decidir. Cuidado com isso, porque a cultura, quando evolui, evolui com experiência. É preciso ter avanço.

O teatro de grupo continua sendo uma alternativa?

PPC – O chamado teatro de grupo, hoje, vem para desunir a categoria. Ele foi um braço armado de determinados políticos, que chegaram ao poder com o objetivo de dividir a categoria, achando isso exatamente na chamada estética. Esses grupos de teatro de vanguarda, chamados de ‘teatro cabeça’, têm um tipo de patrocínio direto do Estado que mantém até o salário dos atores. Ao contrário dos produtores, obrigados a fazer o salário na bilheteria. Esses jovens grupos se tornaram massa de manobra de uma pseudopolítica cultural que se instalou em alguns estados. Em Belo Horizonte, isso foi de uma clareza absoluta. Manipulam-se os recursos para esse tipo de gente, porque o resto que está aí não presta. E é a coisa da falta de memória, também. Chega-se ao poder e apaga-se o que está para trás. É o mesmo que fazer a revolução de Mao Tsé-tung em um país capitalista.
JD – É preciso ter cuidado. Em alguns espetáculos que tenho visto, noto que o pessoal está mais preocupado em fazer charada que teatro. Você não sabe exatamente o que eles querem com o espetáculo.
PPC – O jovem artista de hoje quer falar mais do próprio umbigo que do coletivo. Eu e o Dangelo, que foi pai de todos nós, somos da geração do coletivo. Claro que, em determinado momento, fizemos espetáculo sobre a angústia do homem, a questão existencial. Mas teatro não pode ser só isso. E também não pode ser uma forma hermética, charada para determinado tipo de público. Algo que não precisa e, aliás, nem quer mais de 20 espectadores. Isso só reduz informação. Não é prestação de serviço, é para um grupo de iniciados.
JD – Tenho acompanhado a coisa no eixo Rio-São Paulo, está ocorrendo a mesma coisa lá. Dificilmente, os produtores cariocas e paulistas – com raras exceções – conseguem fazer temporada de três meses. É, no máximo, um mês, um mês e meio. O que acontece? O sujeito está pegando patrocínio, aquilo pagou a produção, ele não está mais interessado em bilheteria não. Aquilo acabou e ele já quer fazer outro espetáculo. O mais prejudicado é o ator, que perde o público.

Estado de Minas - Ailton Magioli - 31/1/10

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